O último relatório divulgado pela ONU revela que as agências de inteligência militares e civis da Venezuela funcionam como estruturas bem coordenadas e eficazes na execução de um plano, organizado nos mais altos níveis do governo, para reprimir a dissidência por meio de crimes contra a humanidade.
Nesse documento, a Missão Internacional Independente de Determinação de Fatos das Nações Unidas sobre a República Bolivariana da Venezuela (FFMV) descreve as funções e contribuições de vários indivíduos em diferentes níveis das cadeias de comando dentro dessas agências, instando as autoridades a investigar suas responsabilidades e processá-los de acordo.
“Nossas investigações e análises mostram que o Estado venezuelano depende dos serviços de inteligência e de seus agentes para reprimir a dissidência no país. Ao fazer isso, estão sendo cometidos graves crimes e violações dos direitos humanos, incluindo atos de tortura e violência sexual. Essas práticas devem cessar imediatamente, e os indivíduos responsáveis devem ser investigados e processados de acordo com a lei”, afirmou Marta Valiñas, presidente da FFMV da ONU.
Em um relatório separado, a FFMV destaca a situação no sul do estado de Bolívar, na Venezuela, onde atores estatais e não estatais cometeram uma série de violações e crimes contra as populações locais em áreas de mineração de ouro.
As descobertas da Missão em ambos os relatórios se basearam em 245 entrevistas confidenciais, presenciais e remotas, por meio de conexões seguras por telefone ou vídeo, incluindo vítimas, seus familiares e ex-funcionários dos serviços de segurança e inteligência. Além disso, a Missão analisou arquivos de casos e outros documentos legais. Devido à falta contínua de acesso ao território venezuelano desde sua criação em 2019, a Missão realizou visitas a áreas ao longo das fronteiras do país.
“Venezuela ainda enfrenta uma profunda crise de direitos humanos, e nossos relatórios hoje destacam apenas dois aspectos dessa situação. Instamos a comunidade internacional a continuar acompanhando de perto os desenvolvimentos na Venezuela e a monitorar se estão sendo feitos progressos credíveis na promoção da justiça, responsabilização e respeito pelos direitos humanos”, disse Valiñas.
A repressão direcionada pelas agências de inteligência do Estado
Em relatórios anteriores, a Missão destacou os papéis dos dois serviços de inteligência militares e civis do Estado — respectivamente, a Diretoria Geral de Contra-inteligência Militar (DGCIM) e o Serviço Nacional de Inteligência Bolivariano (SEBIN) — em cometer violações dos direitos humanos desde 2014, no contexto de direcionamento a oponentes do Governo, reais ou percebidos. A Missão determinou que algumas dessas violações configuram crimes contra a humanidade.
O relatório atual oferece um entendimento mais detalhado do papel de indivíduos em diferentes níveis nas cadeias de comando de ambas as agências na implementação de um plano orquestrado pelo presidente Nicolas Maduro e outros indivíduos de alto nível para suprimir a oposição ao governo, incluindo a comissão de atos de tortura extremamente graves que configuram crimes contra a humanidade.
A Missão documentou 122 casos de vítimas que foram detidas pela DGCIM, 77 das quais foram submetidas a tortura, violência sexual e/ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. A tortura foi realizada em sua sede em Boleíta, em Caracas, e em uma rede de centros de detenção clandestinos por todo o país.
O SEBIN torturou ou maltratou detidos – incluindo políticos de oposição, jornalistas, manifestantes e defensores dos direitos humanos – principalmente no centro de detenção El Helicoide em Caracas. A Missão investigou pelo menos 51 casos desde 2014. O relatório detalha como as ordens eram dadas por indivíduos nos mais altos níveis políticos a funcionários de menor escalão.
Tanto o SEBIN quanto o DGCIM fizeram uso extensivo de violência sexual e de gênero para torturar e humilhar seus detidos.
As autoridades venezuelanas falharam em responsabilizar os perpetradores e fornecer reparação às vítimas em um contexto em que as reformas judiciais anunciadas a partir de 2021 falharam em abordar a falta de independência e imparcialidade do sistema de justiça. As violações e crimes por SEBIN e DGCIM continuam até hoje. As mesmas estruturas, dinâmicas e práticas permanecem em vigor, enquanto os funcionários relevantes continuam a trabalhar para as agências e, em alguns casos, até foram promovidos. A análise da Missão detalha ainda como esses esforços foram postos em ação pelo presidente Maduro e outras autoridades de alto nível como parte de um plano deliberado do governo para suprimir críticas e oposição.
“As violações dos direitos humanos pelas agências de inteligência do Estado, orquestradas nos mais altos níveis políticos, ocorreram em um clima de quase total impunidade. A comunidade internacional deve fazer tudo para garantir que os direitos das vítimas à justiça e reparação sejam garantidos”, disse Francisco Cox, membro da Missão FFMV.
Abusos e violações dos direitos humanos na região de mineração de ouro do Arco Minero
Diante de uma crise na indústria petrolífera doméstica, em 2016 o governo venezuelano estabeleceu o Arco Minero del Orinoco como uma “Zona de Desenvolvimento Estratégico Nacional” para formalizar e estender seu controle sobre a mineração de ouro e outros recursos estratégicos, principalmente no sul do estado de Bolívar. Desde então, a área se tornou fortemente militarizada, enquanto grupos criminosos armados continuam a operar abertamente, controlando minas e populações.
O relatório da FFMV documenta como tanto atores estatais quanto não estatais cometeram violações dos direitos humanos e crimes contra a população local na luta pelo controle das áreas de mineração. Estes incluem privação ilegal de vida, desaparecimentos, extorsão, punição corporal e violência sexual e de gênero. As autoridades não apenas falharam em prevenir e investigar tais abusos, mas a Missão recebeu informações indicando conluio entre atores do Estado e da NSA em partes do estado de Bolívar.
No município de Gran Sabana, no sul do estado, a Missão documentou em profundidade vários casos em que as forças do Estado atacaram populações indígenas, cometendo uma série de violações. Isso inclui conflitos após a tentativa de oposição de mover ajuda humanitária para Gran Sabana do Brasil em 2019, quando as forças do estado cometeram privações arbitrárias de vida e submeteram pessoas indígenas a tortura.
“A situação no estado de Bolívar e em outras áreas de mineração é profundamente preocupante. As populações locais, incluindo os povos indígenas, estão presas na violenta batalha entre o Estado e grupos criminosos armados pelo controle do ouro. Nosso relatório destaca a necessidade de mais investigações nesta região que é, paradoxalmente, uma área quase esquecida do país que ao mesmo tempo gera grandes quantidades de riqueza lícita e ilícita a partir de minerais”, afirmou Patricia Tappatá Valdez, membro da FFMV.